“Ralph, um homem às direitas” – Conto Minimalista #3


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O terceiro conto da Minimalista é da autoria de Ana Moderno. E parece-nos ser um conto às direitas!

Todos os dias, às 8h25 em ponto, Ralph encosta a falange do seu indicador direito no dispositivo que desencadeia a abertura automática de uma porta.

Entra sempre com o pé direito no elevador, onde encosta a falange do indicador direito no botão que tem o número 13.

Dizem, os que trabalham com ele entre as 8h30 e as 17h30, que é um homem às direitas.

Quando se senta na cadeira do seu escritório, benze-se três vezes com a mão direita.

Antes, saúda a dedicada assistente Jessica, com quem trabalha há 15 anos.

O cumprimento é rápido e não oferece o tempo para fazer chegar o perfume enjoativo de Jessica às narinas de Ralph.

Na secretária de Ralph há dois montes de papéis: o da direita é menor e tem documentos a assinar; no da esquerda estão processos para analisar.

Os primeiros a ser vistos são os do lado direito.

Precisamente 13 minutos após Ralph se sentar na cadeira, Jessica bate à porta com três toques discretos.

A assistente traz o tabuleiro com uma chávena de café e três torrões de açúcar mascavado que pousa no lado direito de Ralph.

Ralph devolve os documentos assinados e pede a Jessica que volte a redigir três ofícios onde sublinhou, a vermelho, a redacção ineficiente.

Jessica recolhe os documentos e sai do escritório, discretamente. Ralph cheira o café bem tirado por Jessica. O aroma intenso anula o perfume enjoativo deixado pela assistente.

Ralph segura a chávena na mão direita enquanto inicia a leitura dos processos, com o auxílio da mão esquerda.

Atrás da cadeira de Ralph, a enorme janela oferece vista para a cidade. A neblina decai sobre os prédios, pintando-os de tons dramáticos de cinza, dignos de postal. Ralph, de costas para a paisagem urbana, distribui o olhar entre processos e volumes do código penal.

O homem às direitas estudou Direito e foi o melhor aluno do seu ano. Os louvores e os diplomas que recebeu estão pendurados em molduras douradas na parede do seu escritório. À parte da orquídea com flores brancas na secretária, somam a única decoração que existe no espaço (dispensa-se dizer que a planta foi colocada no seu lado direito pelas mãos de Jessica).

Uma hora e treze minutos depois, Jessica regressa com os ofícios corrigidos. A assistente recolhe a louça do café. Ralph agradece-lhe sem lhe ver o sorriso estampado e as faces rosadas.

Todos os processos que caem nas mãos de Ralph são causas ganhas. É, muito provavelmente, o fim destinado aos documentos que analisa.

A hora de almoço de Ralph é passada no jardim próximo ao prédio onde trabalha. Senta-se sempre no mesmo banco de madeira, no canto direito, onde mastiga a sandes de queijo e fiambre que traz de casa.

Num pequeno lago, frente ao assento, nadam três patos e dois gansos. As migalhas que pousam no pano estendido no regaço de Ralph são distribuídas pelos animais da família Anatidae. Ralph regressa ao escritório às 13h30 em ponto. Treze minutos depois, Jessica irá levar-lhe um café com três torrões de açúcar mascavado.

Durante a tarde, Ralph inicia a leitura do processo do caso de uma mãe acusada de abandonar o filho recém-nascido num contentor.

Pensa-se que Ralph viva sozinho. Depois das 17h30, o corpo alto vestido pelo fato de bom corte de Ralph desaparece nas ruas da cidade.

Há-de voltar às 8h30 do dia seguinte e dos que hão-de vir.

A falange do dedo direito há-de tocar no dispositivo e no botão do elevador, o cumprimento rápido e educado há-de ser dirigido à assistente Jessica, a mão direita há-de benzê-lo, os papéis do monte do lado direito hão-de ser assinados, o café há-de ser bebido com a mão direita. Tudo acontece como previsto neste pequeno relato até ao dia 12. No dia seguinte, porém, Ralph não aparece à hora prevista.

O homem às direitas ausenta-se por vários dias, regressando às 8h25 em ponto do dia 13 do mês seguinte. Nesse dia, a falange do indicador direito não toca nos locais habituais. O cumprimento a Jessica é ainda mais rápido e reservado.

Ralph não se benze. Quando Jessica toca à porta, treze minutos depois, Ralph está sentado de costas, a observar a paisagem citadina através da janela. Ralph, permanecendo de costas, pede a Jessica que coloque o tabuleiro com o café no lado esquerdo da secretária. É a mão esquerda de Ralph que lhe conduz a chávena à boca, libertando o café que, neste dia, tem um aroma diferente. Mesmo com a mão direita amputada, Ralph é um homem às direitas e há-de continuar a ganhar processos.

 

Texto: Ana Moderno
Foto: Rah Pha