“CÃO-GUIA” – Conto Minimalista #7


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“Cão-Guia” é o sétimo conto da Editora Minimalista, da autoria da escritora Andreia Azevedo Moreira.

Sujeito normal, mediano em cada gesto, detinha essa consciência e a auto-estima lucrava pouquíssimo com tamanha lucidez. Ainda assim, evitava os exercícios de autodepreciação, excepto em contextos de humor. Em determinadas circunstâncias, obtinha um certo gozo se arrancava gargalhadas alheias a partir das suas características singulares. O facto é que gostava de si mesmo e da vida que escolhera, apesar da temperatura da sua pele desconsolada. Ela também o pressentia, com generosidade nos olhos e no coração. Qualquer coisa nele, indefinida, a atraía para o percurso próximo do pórtico da sua casa cinzenta, antes de correr para a marginal. Quando calhava cruzarem-se no exterior, sorria-lhe acocorada ao dar festas no Pescas. Luís elegera esse nome na margem de um rio, ao salvá-lo de se afogar em dia de pescaria. O bicho estava prestes a desistir, quando ele, mergulhando a mão centímetros abaixo da superfície líquida, o resgatou do destino que alguém lhe traçara ou que o animal, incauto, havia procurado com passinhos farruscos e brincalhões. Sofia alimentava um encantamento inexplicável pela figura daquele homem melancólico e adorava o cão. O único, entre os dois, que reparara nela. Coincidiam e o Pescas arrebatava-se frenético. Doido de alegria, corria em círculos ao redor da mulher entrelaçando pernas, trela e, com sorte e alguma atenção, as vontades dos humanos. A única travessura a que se subtraía era empoleirar-se, graças às três semanas de aulas que o haviam treinado a abster-se de impulsos que pudessem ser mal interpretados. Luís, alheio à felicidade do companheiro resmungava cumprimentos, consoante a hora, sem se dignar a olhá-la. Sofia deixava cair o menosprezo. Segura e inteira. As manifestações amorosas do canídeo revelavam-se o bastante para não se coibir de procurá-los, quando acometida da saudade incompreensível. Poderá dizer-se que aquelas começavam a sobrepor-se à urgência que havia sentido, a certa altura, em conversar com Luís. Nome desconhecido porque o cão não podia chamar de modo inteligível pelo parceiro taciturno. Cansava-a a total falta de interesse do par. «Quem não dá uma oportunidade, também não a merece!» Consolava-se. Os dias sucediam-se parecidos, para um e para o outro. Talvez ela fosse menos amargurada, se é que são mensuráveis os amargores das pessoas. Luís caminhava pelas horas sem se envolver com o que o rodeasse. Os sonhos e as insónias pertenciam a uma colega com quem pretendia desbravar o conceito indecifrável do amor. Essa falhava corresponder o desejo e, pior, usava-o para se divertir. Permitia-lhe as incursões cruéis ao íntimo enredado na paixão ilusória. Dominadora. Sofia fugia de grandes reflexões. Esquecia-se, até, do motivo pelo qual se mantinha desacompanhada. Tentara algumas vezes acertar-se nesse capítulo, mas sentira ser sempre a peça defeituosa, desprovida de encaixe. Acabara por aceitá-lo, não resignada, antes com uma esperança muda. Sentia prazer: nas corridas matinais e nos passeios ao sol-pôr; na possibilidade de afagar a ternura do Pescas, quando se cruzavam na rua ou na areia; em comprar o pão recém-saído do forno a lenha, na padaria da esquina (uma casinha branca e preta pitoresca que visitava desde criança), o qual barrava com o doce de tomate da avó materna de noventa e um anos, actriz de renome com quem aprendera a projectar a voz com o diafragma (aptidão que de nada lhe servia); em respirar fundo, junto ao oceano, enquanto esticava os braços em V para o céu, como quem se lança para abraçar as nuvens. Mantinha algumas amizades dos tempos da adolescência e revelava-se competente no trabalho, embora distante do entusiasmo. Enfim, vivia confortável. Luís acreditava que a única posse era o ardor que o movia. Que faria da existência quando a paixão se extinguisse pelos vazios acumulados? Era tão sozinho que só o cão o impedia de se matar, salvando-o, dia-após-dia, em reciprocidade. O destino escrevia-se, para ambos, escorreito. Seguiam viventes. À noite, em casa, satisfazia o corpo sôfrego. Masturbava-se a pensar na outra. De manhã, desconsiderava olimpicamente Sofia que se entretinha a estudá-lo. Começou pelo notável: olhos tristes, boca contida, sorriso forçado, cabelo revolto, ombros caídos, unhas roídas, roupa idêntica e escura, andar desajeitado, voz apagada. Apelos meigos e nervosos com os atropelos do Pescas. Aparência-abandono, lentidão dos gestos, desistência da cabeça aos pés. Irrompia nela, amiúde, uma necessidade imensa de ser consolo, de amá-lo, inclusive. Logo ela que jamais entendera de que se falava quando o tema era o amor. Apetecia-lhe dizer em voz alta, obrigando-o a encará-la, que estaria estragado dos pensamentos, porém, ignorava como fazê-lo, se ele tão-pouco notara a sua presença. O ritual do Pescas durou, com a cumplicidade de Sofia. A cegueira de Luís persistiu, irremediável, durante dias que ela deixou de contar.

A bola de ténis molhada sobrevoou o areal. Rasou o rabo-de-cavalo da mulher que fitava, com os seus olhos negros, a linha escura e distante. Os sentidos para lá das milhas de água gelada e límpida que ameaçava os ténis secos. Regressou com a bola a embater nos calcanhares. Nesse crepúsculo inocente, Sofia era já outra. Haviam decorrido meses desde que passara diante da morada do homem e do cão. Esquecida: a indelicadeza do rapaz. Apanhou o objecto amarelo. Reconheceu o Pescas que recuperou o brinquedo, beijando-lhe as mãos como fazem os cães, pião de contentamento. Devolveu o entusiasmo mas enxotou-o, resoluta, antes que Luís os alcançasse e retomou a marcha. Ele olhou insistente para trás, para vê-la melhor. Depois, seguiu indisposto o cão.

 

Texto e Foto: Andreia Azevedo Moreira