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O oitavo conto da editora Minimalista fica a cargo da introspeção de Elsa Margarida Rodrigues. Boas leituras!
O coração do menino começa finalmente a abrandar das dores de nascer.
Ele que nem sabe o que é nascer nem que existe universo para além do espaço morno e latejante de onde acaba de sair.
Nele ainda não há pensamento. Nem palavras. Só coisas confusas e a certeza vaga que está fora do mundo, despido de corpo. Nu. Frágil. Sem amparo.
Abre os olhos.
A luz intensa dói.
Os movimentos bruscos, tão diferentes do oscilar suave do seu mundo, doem.
O ar a entrar nos pulmões dói.
Viver dói e o menino grita.
O coração da mulher começa finalmente a abrandar das dores de fazer nascer.
Sente ainda as entranhas rasgadas a latejar. Sente o corpo tremer. Sente o suor que lhe corre pela testa, pela cara. Mas já não grita.
Sabe que a vida que gerara no seu corpo está no mundo. Vira-a a sair de si, ainda ligado pelo cordão umbilical, coberto de sangue e placenta.
O seu filho.
Coberto com o seu sangue.
Coberto com a sua placenta.
Saído das suas entranhas.
Ouve-o chorar na outra sala.
O menino já não chora.
Os olhinhos pequeninos habituam-se à intensidade da luz. O seu corpinho, limpo e bem agasalhado, deixa de tremer.
Está envolvido num balanço leve em direção a um cheiro que reconhece como seu.
E de repente, sente como se regressasse a si.
O som que lhe chega é o pulsar forte do seu mundo, acompanhado da voz que conhece desde sempre.
A única voz que sabe sua.
A mulher chora. Acaba de receber nos braços o corpo pequeno do filho.
Envolve-o em si. Cheira-lhe a cabeça, beija-lhe o rosto.
Aperta-o junto ao seu peito: coração contra coração, os dois em uníssono como se fossem um corpo só, o corpo que foram a dois durante tantos meses.
E agora ali está, uma vida nova feita em si.
Feita da sua carne.
Feita do seu sangue.
Feita de si.
Agarra-o com força e canta-lhe a canção que cantara para a sua barriga durante meses.
A canção cantada a um filho que ainda era sonho.
O menino dorme.
Sonha um sonho sem forma, em que tudo se mistura: sons, cores e a luz fria do mundo.
Chora com saudades do ventre-mundo que fora a sua casa.
Adormece de novo embalado no pulsar forte, a face encostada à carne macia, o cheiro morno a inundar-lhe as narinas, a boca ancorada no bico da mama, ligado a tudo o que é seu.
A mãe não consegue dormir.
Zela pelo sono agitado do menino, entrecortado por choros e embalos.
As mãos pequeninas tateiam-lhe o peito macio e a boca cega, faminta, morde o ar.
A mãe orienta o peito e a boca para se unirem num prolongamento natural de ambos.
O bebé mama e acalma.
A mãe acalma também.
Está plena porque dividida em dois, ligada à vida por uma vida maior, a vida que veio de si.
E o futuro está ali, nos seus braços: os jogos que não jogara, as coisas que não aprendera, os amores que não tivera, o mundo que não conhecera.
Naquele corpo pequeno, envolvido no seu peito morno, estão todas as possibilidades: futebolista, piloto de automóveis, padre, arquiteto, engenheiro, poeta, artista, amante, companheiro, boémio, aventureiro.
O filho que tem nos braços poderá ser bonito, culto, sedutor.
Poderá dar a volta ao mundo.
Poderá ser pai.
Salvar vidas.
Ser pleno sendo apenas um ou dividir-se por muitas vidas.
Pode sofrer. Pode ser feliz.
Pode amar e ser amado como ela nunca fora.
O menino dorme sem saber que tem em si todos os futuros possíveis.
Sem saber que há futuro.
Sem saber que a vida se estende para lá do bico doce do seio que o alimenta.
O tempo passa, contado nos dias, semanas e meses do menino.
O coração forte, a voz suave e o leite morno são o universo do menino, tudo quanto precisa.
Mas dia após dia a mãe leva o menino à janela e mostra-lhe que há um universo à sua espera.
Para lá das cortinas, para além do quarto, para depois de agora, espreitam meias vidas ou vidas inteiras, vidas boas ou más vidas, vidas banais ou extraordinárias, grandes vidas ou vidas pequenas. Vidas do tamanho do sonho, da vontade e da sorte.
Mas para já, não há pressa.
O quarto pequeno, onde os dois são um, é todo o mundo de que precisam.
A mãe beija a cabeça do menino. O menino sorri.
A cortina da janela abana com uma brisa suave.
O futuro virá depois.
Texto: Elsa Margarida Rodrigues
Foto: Elsa Margarida Rodrigues