“Dentro” – Conto Minimalista #8


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O oitavo conto da editora Minimalista fica a cargo da introspeção de Elsa Margarida Rodrigues. Boas leituras! 

O coração do menino começa finalmente a abrandar das dores de nascer.

Ele que nem sabe o que é nascer nem que existe universo para além do espaço morno e latejante de onde acaba de sair.

Nele ainda não há pensamento. Nem palavras. Só coisas confusas e a certeza vaga que está fora do mundo, despido de corpo. Nu. Frágil. Sem amparo.

Abre os olhos.

A luz intensa dói.

Os movimentos bruscos, tão diferentes do oscilar suave do seu mundo, doem.

O ar a entrar nos pulmões dói.

Viver dói e o menino grita.

O coração da mulher começa finalmente a abrandar das dores de fazer nascer.

Sente ainda as entranhas rasgadas a latejar. Sente o corpo tremer. Sente o suor que lhe corre pela testa, pela cara. Mas já não grita.

Sabe que a vida que gerara no seu corpo está no mundo. Vira-a a sair de si, ainda ligado pelo cordão umbilical, coberto de sangue e placenta.

O seu filho.

Coberto com o seu sangue.

Coberto com a sua placenta.

Saído das suas entranhas.

Ouve-o chorar na outra sala.

O menino já não chora.

Os olhinhos pequeninos habituam-se à intensidade da luz. O seu corpinho, limpo e bem agasalhado, deixa de tremer.

Está envolvido num balanço leve em direção a um cheiro que reconhece como seu.

E de repente, sente como se regressasse a si.

O som que lhe chega é o pulsar forte do seu mundo, acompanhado da voz que conhece desde sempre.

A única voz que sabe sua.

A mulher chora. Acaba de receber nos braços o corpo pequeno do filho.

Envolve-o em si. Cheira-lhe a cabeça, beija-lhe o rosto.

Aperta-o junto ao seu peito: coração contra coração, os dois em uníssono como se fossem um corpo só, o corpo que foram a dois durante tantos meses.

E agora ali está, uma vida nova feita em si.

Feita da sua carne.

Feita do seu sangue.

Feita de si.

Agarra-o com força e canta-lhe a canção que cantara para a sua barriga durante meses.

A canção cantada a um filho que ainda era sonho.

O menino dorme.

Sonha um sonho sem forma, em que tudo se mistura: sons, cores e a luz fria do mundo.

Chora com saudades do ventre-mundo que fora a sua casa.

Adormece de novo embalado no pulsar forte, a face encostada à carne macia, o cheiro morno a inundar-lhe as narinas, a boca ancorada no bico da mama, ligado a tudo o que é seu.

A mãe não consegue dormir.

Zela pelo sono agitado do menino, entrecortado por choros e embalos.

As mãos pequeninas tateiam-lhe o peito macio e a boca cega, faminta, morde o ar.

A mãe orienta o peito e a boca para se unirem num prolongamento natural de ambos.

O bebé mama e acalma.

A mãe acalma também.

Está plena porque dividida em dois, ligada à vida por uma vida maior, a vida que veio de si.

E o futuro está ali, nos seus braços: os jogos que não jogara, as coisas que não aprendera, os amores que não tivera, o mundo que não conhecera.

Naquele corpo pequeno, envolvido no seu peito morno, estão todas as possibilidades: futebolista, piloto de automóveis, padre, arquiteto, engenheiro, poeta, artista, amante, companheiro, boémio, aventureiro.

O filho que tem nos braços poderá ser bonito, culto, sedutor.

Poderá dar a volta ao mundo.

Poderá ser pai.

Salvar vidas.

Ser pleno sendo apenas um ou dividir-se por muitas vidas.

Pode sofrer. Pode ser feliz.

Pode amar e ser amado como ela nunca fora.

O menino dorme sem saber que tem em si todos os futuros possíveis.

Sem saber que há futuro.

Sem saber que a vida se estende para lá do bico doce do seio que o alimenta.

O tempo passa, contado nos dias, semanas e meses do menino.

O coração forte, a voz suave e o leite morno são o universo do menino, tudo quanto precisa.

Mas dia após dia a mãe leva o menino à janela e mostra-lhe que há um universo à sua espera.

Para lá das cortinas, para além do quarto, para depois de agora, espreitam meias vidas ou vidas inteiras, vidas boas ou más vidas, vidas banais ou extraordinárias, grandes vidas ou vidas pequenas. Vidas do tamanho do sonho, da vontade e da sorte.

Mas para já, não há pressa.

O quarto pequeno, onde os dois são um, é todo o mundo de que precisam.

A mãe beija a cabeça do menino. O menino sorri.

A cortina da janela abana com uma brisa suave.

O futuro virá depois.

 

Texto: Elsa Margarida Rodrigues

Foto: Elsa Margarida Rodrigues

“CÃO-GUIA” – Conto Minimalista #7


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“Cão-Guia” é o sétimo conto da Editora Minimalista, da autoria da escritora Andreia Azevedo Moreira.

Sujeito normal, mediano em cada gesto, detinha essa consciência e a auto-estima lucrava pouquíssimo com tamanha lucidez. Ainda assim, evitava os exercícios de autodepreciação, excepto em contextos de humor. Em determinadas circunstâncias, obtinha um certo gozo se arrancava gargalhadas alheias a partir das suas características singulares. O facto é que gostava de si mesmo e da vida que escolhera, apesar da temperatura da sua pele desconsolada. Ela também o pressentia, com generosidade nos olhos e no coração. Qualquer coisa nele, indefinida, a atraía para o percurso próximo do pórtico da sua casa cinzenta, antes de correr para a marginal. Quando calhava cruzarem-se no exterior, sorria-lhe acocorada ao dar festas no Pescas. Luís elegera esse nome na margem de um rio, ao salvá-lo de se afogar em dia de pescaria. O bicho estava prestes a desistir, quando ele, mergulhando a mão centímetros abaixo da superfície líquida, o resgatou do destino que alguém lhe traçara ou que o animal, incauto, havia procurado com passinhos farruscos e brincalhões. Sofia alimentava um encantamento inexplicável pela figura daquele homem melancólico e adorava o cão. O único, entre os dois, que reparara nela. Coincidiam e o Pescas arrebatava-se frenético. Doido de alegria, corria em círculos ao redor da mulher entrelaçando pernas, trela e, com sorte e alguma atenção, as vontades dos humanos. A única travessura a que se subtraía era empoleirar-se, graças às três semanas de aulas que o haviam treinado a abster-se de impulsos que pudessem ser mal interpretados. Luís, alheio à felicidade do companheiro resmungava cumprimentos, consoante a hora, sem se dignar a olhá-la. Sofia deixava cair o menosprezo. Segura e inteira. As manifestações amorosas do canídeo revelavam-se o bastante para não se coibir de procurá-los, quando acometida da saudade incompreensível. Poderá dizer-se que aquelas começavam a sobrepor-se à urgência que havia sentido, a certa altura, em conversar com Luís. Nome desconhecido porque o cão não podia chamar de modo inteligível pelo parceiro taciturno. Cansava-a a total falta de interesse do par. «Quem não dá uma oportunidade, também não a merece!» Consolava-se. Os dias sucediam-se parecidos, para um e para o outro. Talvez ela fosse menos amargurada, se é que são mensuráveis os amargores das pessoas. Luís caminhava pelas horas sem se envolver com o que o rodeasse. Os sonhos e as insónias pertenciam a uma colega com quem pretendia desbravar o conceito indecifrável do amor. Essa falhava corresponder o desejo e, pior, usava-o para se divertir. Permitia-lhe as incursões cruéis ao íntimo enredado na paixão ilusória. Dominadora. Sofia fugia de grandes reflexões. Esquecia-se, até, do motivo pelo qual se mantinha desacompanhada. Tentara algumas vezes acertar-se nesse capítulo, mas sentira ser sempre a peça defeituosa, desprovida de encaixe. Acabara por aceitá-lo, não resignada, antes com uma esperança muda. Sentia prazer: nas corridas matinais e nos passeios ao sol-pôr; na possibilidade de afagar a ternura do Pescas, quando se cruzavam na rua ou na areia; em comprar o pão recém-saído do forno a lenha, na padaria da esquina (uma casinha branca e preta pitoresca que visitava desde criança), o qual barrava com o doce de tomate da avó materna de noventa e um anos, actriz de renome com quem aprendera a projectar a voz com o diafragma (aptidão que de nada lhe servia); em respirar fundo, junto ao oceano, enquanto esticava os braços em V para o céu, como quem se lança para abraçar as nuvens. Mantinha algumas amizades dos tempos da adolescência e revelava-se competente no trabalho, embora distante do entusiasmo. Enfim, vivia confortável. Luís acreditava que a única posse era o ardor que o movia. Que faria da existência quando a paixão se extinguisse pelos vazios acumulados? Era tão sozinho que só o cão o impedia de se matar, salvando-o, dia-após-dia, em reciprocidade. O destino escrevia-se, para ambos, escorreito. Seguiam viventes. À noite, em casa, satisfazia o corpo sôfrego. Masturbava-se a pensar na outra. De manhã, desconsiderava olimpicamente Sofia que se entretinha a estudá-lo. Começou pelo notável: olhos tristes, boca contida, sorriso forçado, cabelo revolto, ombros caídos, unhas roídas, roupa idêntica e escura, andar desajeitado, voz apagada. Apelos meigos e nervosos com os atropelos do Pescas. Aparência-abandono, lentidão dos gestos, desistência da cabeça aos pés. Irrompia nela, amiúde, uma necessidade imensa de ser consolo, de amá-lo, inclusive. Logo ela que jamais entendera de que se falava quando o tema era o amor. Apetecia-lhe dizer em voz alta, obrigando-o a encará-la, que estaria estragado dos pensamentos, porém, ignorava como fazê-lo, se ele tão-pouco notara a sua presença. O ritual do Pescas durou, com a cumplicidade de Sofia. A cegueira de Luís persistiu, irremediável, durante dias que ela deixou de contar.

A bola de ténis molhada sobrevoou o areal. Rasou o rabo-de-cavalo da mulher que fitava, com os seus olhos negros, a linha escura e distante. Os sentidos para lá das milhas de água gelada e límpida que ameaçava os ténis secos. Regressou com a bola a embater nos calcanhares. Nesse crepúsculo inocente, Sofia era já outra. Haviam decorrido meses desde que passara diante da morada do homem e do cão. Esquecida: a indelicadeza do rapaz. Apanhou o objecto amarelo. Reconheceu o Pescas que recuperou o brinquedo, beijando-lhe as mãos como fazem os cães, pião de contentamento. Devolveu o entusiasmo mas enxotou-o, resoluta, antes que Luís os alcançasse e retomou a marcha. Ele olhou insistente para trás, para vê-la melhor. Depois, seguiu indisposto o cão.

 

Texto e Foto: Andreia Azevedo Moreira

“Asas” – Conto Minimalista #6


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“Asas” é o sexto conto da Editora Minimalista, da autoria do escritor Paulo Kellerman.

Houve um rapaz que conheceu uma rapariga. Ele apaixonou-se, ela nem por isso; mas ele só percebeu mais tarde: quando lhe ofereceu uma flor. É que não havia transportes, tudo isto se passou no tempo em que se andava a pé. Ele vivia numa aldeia, ela noutra; pelo meio, muitos quilómetros de distância. Isso não o preocupava, sempre ouvira dizer que o amor é cego (mentira) e que dá asas (talvez), o que é bom para quem tem de andar a pé. Num domingo levantou-se cedo e foi ao jardim da mãe, andou às voltas até decidir qual era a flor mais bonita, apanhou-a cuidadosamente e pôs-se a caminho. Ia pensando no que poderia acontecer quando oferecesse a sua flor (sonhava acordado, e isso é que dá asas: o sonho); por vezes, interrogava-se se teria escolhido a flor certa; se haveria uma flor certa. Ia tão distraído com os seus pensamentos que nem reparou quando apareceu a primeira borboleta; nem a segunda, nem a terceira; só percebeu que algo anormal estava a acontecer quando já voavam mais de vinte borboletas à sua volta. Caminhava pelos campos desertos e silenciosos, agarrando a sua flor com delicadeza; e atrás de si, atrás do perfume da sua flor, seguia um rasto de borboletas. Achou estranho porque nunca vira borboletas no jardim da mãe, mas decidiu que não haveria problema em chegar ao seu destino tão bem acompanhado. Quando entrou na aldeia, segurando orgulhosamente a flor, era seguido por mais de mil borboletas; formavam uma espécie de arco-íris vivo e fluido, mutante; era uma coisa bonita de se ver. Havia no ar um leve murmúrio provocado pelo bater de todas aquelas asas; como se fosse uma oração. As pessoas da aldeia vieram espreitar tão estranha procissão, escutar tão rara prece; algumas aplaudiram, outras benzeram-se; todas em silêncio, talvez fascinadas, talvez assustadas. Por fim, o rapaz chegou à porta da casa da rapariga. Ela saiu, olhou as borboletas, abanou a cabeça. Ele aproximou-se e estendeu a mão com a flor, como se fosse a mais preciosa das dádivas. As borboletas voavam em círculos, os vizinhos observavam. Ele aguardou pelo sorriso com que sonhara, a mão estendida, a flor à espera. Mas ela não a segurou; disse, num tom rabugento: não me trouxeste nada para comer? Nesse momento, as borboletas entraram em alvoroço e voaram freneticamente, formando uma espécie de tornado; desapareceram em poucos segundos. Ficou o silêncio, e nada mais. Ela regressou a casa, ele percebeu que o amor pode dar asas mas também é muito estúpido. Abandonou a aldeia apressadamente, indiferente aos ocasionais risos da audiência. Como não tinha nada melhor para fazer, foi contando os passos que dava. Quando chegou a oitocentos e dezoito sentiu vontade de se deitar na erva fofa e dormir, porque contar passos ainda era mais eficaz que contar ovelhas; nunca vira uma ovelha mas sabia que existiam; tal como o amor: nunca o vira mas sempre contara com ele, sabia que certamente existiria. Chegou de madrugada e a primeira coisa que fez foi devolver a flor ao jardim da mãe, depositando-a sobre a relva humedecida pelo orvalho; talvez ressuscitasse. Depois foi para o seu quarto e adormeceu. Sonhou com borboletas.

 

Texto: Paulo Kellerman
Ilustração: Maraia

“As Horas Mortas” – Conto Minimalista #5


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Mais um conto da editora leiriense, agora pela caneta de Ana Gilbert. “As horas mortas” ou as horas que só são vivenciadas por alguns…

Foi à varanda fumar um cigarro, como de costume. Mas desta vez era diferente. Casamento desfeito, malas arrumadas, ida para um apart-hotel. Repara na vista que é desconhecida. Terá de observar cada edifício, cada árvore, até conseguir visualizá-los de olhos fechados para que a paisagem se torne familiar. Como a outra. As roupas trazidas, poucas, menos do que necessita – ternos gravatas camisas sapatos – convivem pacificamente no armário. Uma paz que não sente. Sabe que qualquer dia destes será preciso voltar e buscar mais. Objetos, quase nenhum, salvo alguns papéis dos negócios mais recentes, coisas de uso diário e a cigarreira de prata, herança de um avô distante, que agora acaricia.

Volta a pensar na mulher, nos filhos dormindo a essa hora. Prefere a madrugada, as horas mortas do dia. Sem solicitações familiares. O mundo se suspende por alguns momentos e quase é possível iludir-se de que tudo não passa de um episódio de mau gosto para perturbar sua metódica rotina. Sabe que não. Não desta vez. Agora é sem volta. A discussão com a mulher, que os filhos tardios presenciaram, arrebentou os últimos fios dos frágeis laços que os uniam. Corroídos pelo tédio. Era isso. Toda a sua vida se desenrolara em meio a um grande e inequívoco tédio. Dividia-se entre as roupas de trabalho e as outras, as de viver, que quase não usava.

Agora, frente ao vazio do horizonte, tenta retraçar os momentos bons, mas não consegue. Como os edifícios da nova vizinhança. Eles escorregam na memória, pregam peças, escondem-se por entre os contratos fechados com os seletos clientes. Percebe que o vazio é também seu. Depara-se com o abismo instalado, sorrateiro, cavado sistematicamente a cada novo amanhecer sem sentido.

Um brisa morna, estagnada, balança as folhas das árvores da rua. Imagina sentir um cheiro acre que o deixa vagamente nauseado. Um leve tremor perpassa os dedos que sustentam o cigarro. Ao olhar a sala, percebe nos móveis impessoais as escolhas que nunca foram profundamente suas, mas de alguém que o habita. Quem?

Pela primeira vez, é capaz de nomear algo em si e empalidece. Um filete de suor frio escorre pela têmpora. Sente, e isso é novo, que é preciso fazer alguma coisa. Aquela sensação difusa na boca do estômago de repente grita dentro dele. Uma dor aguda corta-o em diagonal, como o risco do espelho partido pelo frasco de perfume de mulher na noite anterior.

Como que em câmera lenta, apaga o cigarro e encara o telefone. Em algum ponto da cidade, na paisagem compartilhada, um outro telefone toca.

 

Texto: Ana Gilbert
Foto: Ana Gilbert

“Inventário” – Conto Minimalista #4


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“Inventário” é o quarto conto da Editora Minimalista, da autoria da escritora Lia Wolf.

Trinta e três anos, trezentos e trinta e três dias: três mil, trezentos e trinta e três órgãos sexuais. Não sabia se era a coincidência ou a capicua, mas excitava-a. 

Olha para o livro pousado no colo: a sua tese de mestrado.

Passa o dedo, carinhosamente, pelas letras em relevo: fruto de um arroubo de irreverência. A cor e a disposição das letras sugerem o conteúdo. Um pénis destaca-se parecendo insuflar a capa: vermelho-glande, como lhe chamara. A memória provoca-lhe um calor de satisfação. Sabor de missão cumprida.

Sorri, ao lembrar-se como o seu orientador ficou melindrado quando lhe propôs o título “Inventário de Pénis”. Acabou por castrá-lo, resumindo-o a “Inventário”.

A introdução teórica parece-lhe um pouco aborrecida, mas com algumas ideias interessantes. “Prazer do acto da cópula: essa é a verdadeira essência e o núcleo de todas as coisas, a finalidade e a meta de toda a existência”. 

Passa algumas páginas à frente e lê um parágrafo à sorte. “O instinto sexual é o núcleo da vontade de viver e, portanto, a concentração de todo querer; eis por que acabei definindo os genitais como o foco da vontade e fulcro de estudo”.

Mais umas páginas, e o tema desenvolve-se. “O orgasmo jorra por entre estertores musculares, olhos revirados, dentes rangentes e balbuciares: que vão desde o sagrado Ó meu Deus!, passando pelo infantil Aí vai leitinho, até ao profano e libertador Ah, caralho!. No momento final todos os homens retornam ao ventre materno, no êxtase de um flutuar, libertador, ancorado pelo cordão umbilical. Pó és e pó serás. Somos apenas animais transitórios, subjugados por hormonas.”

Decididamente, já chega; está sem paciência para mais: é preciso mudar a imagem de fundo dos seus sonhos. Sempre que fecha os olhos, vê-os: de todas as formas e feitios – dos mais pueris aos mais maduros, dos mais raquíticos aos mais atléticos, dos mais encarpados aos mais estagnados. 

Pousa-o sobre o banco do passageiro, ao lado, e fita o mar. A espuma branca das ondas, em movimentos regulares, hipnotiza-a e atira-a novamente para dentro de si. Despe os últimos pudores (será que sobraram alguns?) e sente a água a lavar-lhe a alma. Mergulha, e relembra os últimos dias: os últimos trezentos e trinta e três dias.

Dez homens por dia, aproximadamente. Ou deveria dizer, a bem da verdade, dez pénis por dia. Os homens são apenas um mal necessário, uma extensão inevitável do foco da pesquisa principal. Ruído de fundo, branco: densidade espectral plana.

Abana a cabeça, e aperta os olhos com força, tentado sacudir os pensamentos aleatórios e alinhar as ideias: tentando silenciar as vozes que nunca se calam. Apoia-se nos braços, rodeada de água, nua, debruçada para trás, deixando-se envolver: permitindo-se flutuar nas memórias uma última vez.

Suspira, relembrando o conselho do seu orientador de mestrado: “sem prática não há teoria: há que meter as mãos na massa!”. E ela assim fez. Mediu, pesou, estimulou, testou: tudo registado; tudo em prol da ciência. 

Recorda cada um deles: com memória fotográfica, olfacto de sabujo, ouvido absoluto -para cada gemido musical-, e paladar de chef.

Todos: únicos e comparáveis.

Catalogados e ordenados.

Com índice remissivo. 

Tempo de refracção.

E desvio-padrão.

 

Texto: Lia Wolf
Foto: Frankie Boy

“Ralph, um homem às direitas” – Conto Minimalista #3


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O terceiro conto da Minimalista é da autoria de Ana Moderno. E parece-nos ser um conto às direitas!

Todos os dias, às 8h25 em ponto, Ralph encosta a falange do seu indicador direito no dispositivo que desencadeia a abertura automática de uma porta.

Entra sempre com o pé direito no elevador, onde encosta a falange do indicador direito no botão que tem o número 13.

Dizem, os que trabalham com ele entre as 8h30 e as 17h30, que é um homem às direitas.

Quando se senta na cadeira do seu escritório, benze-se três vezes com a mão direita.

Antes, saúda a dedicada assistente Jessica, com quem trabalha há 15 anos.

O cumprimento é rápido e não oferece o tempo para fazer chegar o perfume enjoativo de Jessica às narinas de Ralph.

Na secretária de Ralph há dois montes de papéis: o da direita é menor e tem documentos a assinar; no da esquerda estão processos para analisar.

Os primeiros a ser vistos são os do lado direito.

Precisamente 13 minutos após Ralph se sentar na cadeira, Jessica bate à porta com três toques discretos.

A assistente traz o tabuleiro com uma chávena de café e três torrões de açúcar mascavado que pousa no lado direito de Ralph.

Ralph devolve os documentos assinados e pede a Jessica que volte a redigir três ofícios onde sublinhou, a vermelho, a redacção ineficiente.

Jessica recolhe os documentos e sai do escritório, discretamente. Ralph cheira o café bem tirado por Jessica. O aroma intenso anula o perfume enjoativo deixado pela assistente.

Ralph segura a chávena na mão direita enquanto inicia a leitura dos processos, com o auxílio da mão esquerda.

Atrás da cadeira de Ralph, a enorme janela oferece vista para a cidade. A neblina decai sobre os prédios, pintando-os de tons dramáticos de cinza, dignos de postal. Ralph, de costas para a paisagem urbana, distribui o olhar entre processos e volumes do código penal.

O homem às direitas estudou Direito e foi o melhor aluno do seu ano. Os louvores e os diplomas que recebeu estão pendurados em molduras douradas na parede do seu escritório. À parte da orquídea com flores brancas na secretária, somam a única decoração que existe no espaço (dispensa-se dizer que a planta foi colocada no seu lado direito pelas mãos de Jessica).

Uma hora e treze minutos depois, Jessica regressa com os ofícios corrigidos. A assistente recolhe a louça do café. Ralph agradece-lhe sem lhe ver o sorriso estampado e as faces rosadas.

Todos os processos que caem nas mãos de Ralph são causas ganhas. É, muito provavelmente, o fim destinado aos documentos que analisa.

A hora de almoço de Ralph é passada no jardim próximo ao prédio onde trabalha. Senta-se sempre no mesmo banco de madeira, no canto direito, onde mastiga a sandes de queijo e fiambre que traz de casa.

Num pequeno lago, frente ao assento, nadam três patos e dois gansos. As migalhas que pousam no pano estendido no regaço de Ralph são distribuídas pelos animais da família Anatidae. Ralph regressa ao escritório às 13h30 em ponto. Treze minutos depois, Jessica irá levar-lhe um café com três torrões de açúcar mascavado.

Durante a tarde, Ralph inicia a leitura do processo do caso de uma mãe acusada de abandonar o filho recém-nascido num contentor.

Pensa-se que Ralph viva sozinho. Depois das 17h30, o corpo alto vestido pelo fato de bom corte de Ralph desaparece nas ruas da cidade.

Há-de voltar às 8h30 do dia seguinte e dos que hão-de vir.

A falange do dedo direito há-de tocar no dispositivo e no botão do elevador, o cumprimento rápido e educado há-de ser dirigido à assistente Jessica, a mão direita há-de benzê-lo, os papéis do monte do lado direito hão-de ser assinados, o café há-de ser bebido com a mão direita. Tudo acontece como previsto neste pequeno relato até ao dia 12. No dia seguinte, porém, Ralph não aparece à hora prevista.

O homem às direitas ausenta-se por vários dias, regressando às 8h25 em ponto do dia 13 do mês seguinte. Nesse dia, a falange do indicador direito não toca nos locais habituais. O cumprimento a Jessica é ainda mais rápido e reservado.

Ralph não se benze. Quando Jessica toca à porta, treze minutos depois, Ralph está sentado de costas, a observar a paisagem citadina através da janela. Ralph, permanecendo de costas, pede a Jessica que coloque o tabuleiro com o café no lado esquerdo da secretária. É a mão esquerda de Ralph que lhe conduz a chávena à boca, libertando o café que, neste dia, tem um aroma diferente. Mesmo com a mão direita amputada, Ralph é um homem às direitas e há-de continuar a ganhar processos.

 

Texto: Ana Moderno
Foto: Rah Pha

“Paz” – Conto Minimalista #2

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Paz é o nome do segundo conto, da autoria de Mónia Camacho. Porque descobrir a paz em tempos de incerteza será sempre um alívio

Gabriel remexeu os bolsos e as mãos trouxeram à superfície destroços de vida. Segurou a moeda de dois euros, tudo o que lhe restava naquela manhã de Inverno, e pediu uma sopa de feijão que comeu à janela para vigiar a bicicleta.

O calor começou a propagar-se a zonas do corpo longínquas, pontas de si que já pouco conhecia. Um momento de conforto. Não sabia quando ia haver mais.

Manteve na boca o sabor caseiro imitado, colher a colher, e deixou-se ficar a gastar mais um bocado de tempo.

A cidade continuava o caos.

As estruturas não funcionavam. Os tumultos eram constantes.

O nível do mar continuava a subir todos os dias.

Agora, a normalidade era andar de galochas com água pelas canelas.

Lisboa era a nova Veneza… E Veneza tentava uma estratégia louca para se elevar. Outras cidades europeias desapareciam também nas águas.

O monumento dos Descobrimentos e a Torre de Belém, ícones do turismo da cidade, rodeados de Tejo como ilhas. O rio chegava ao Centro Cultural de Belém e a linha do comboio estava interrompida. Toda a baixa meio submersa.

A natureza empurrava o homem e fazia saber que não estava para brincadeiras.

Levou a bicicleta à mão pelo passeio vendo o rasto de água lamacenta que deixava para trás. Já na estrada pedalou com vigor, um esforço mais para esquecer do que para se transportar depressa.

O seu propósito de vida estava esbatido. E não era, exactamente, um rapaz de vinte anos. Era alguém de quarenta que já devia ter arranjado tino para governar a existência. O insucesso deve ser isso.

Morava numa zona alta da cidade. Um estúdio com um pequeno terraço aberto ao céu. Refúgio de todas as estranhezas de que o mundo agora era feito. A única coisa que herdara da mãe; era o que lhe tinha valido nestes tempos de escassez. E com aulas de yoga ia dando.

Subiu as escadas com a bicicleta às costas. Quando chegou tinha um envelope colado na porta pela porteira. Pegou-lhe com as mãos suadas; abriu-o e ficou um momento a olhar para a imagem.

Precisava de ar.

Elsa morrera!

A mulher que o acaso lhe entregara um dia.

A parte oriental da sua vida. A melhor! Aquela que deixara rasto.

Há anos que Gabriel estava sozinho no mundo. Não havia pessoas para desiludir, nem expectativas para satisfazer. Também não havia colo, nem amor. As estações passavam por cima das coisas de cada dia. A ir e a vir.

E agora haveria uma pequena macaense que ia chegar no voo da British Airways das vinte e uma horas…

Maria da Paz.

A Elsa tinha uma filha.

Estava tramado! Não sabia fazer isso.

Ainda menos neste mundo maluco. Mas era também por isso que tinha de aceitar.

A sobrevivência torna-se mais violenta quando temos alguém com dez anos para cuidar…

Meteu-se debaixo do chuveiro a apagar alguma ansiedade. Queria ficar ali indefinidamente, mas não tinha dinheiro para isso. Aliás, não tinha dinheiro para nada.

Vestiu-se e preparou-se para sair.

Não queria chegar tarde àquele momento.

O aeroporto estava razoavelmente calmo, já Gabriel estava longe desse luxo.

A hospedeira pediu-lhe identificação e entregou-lhe uma folha para assinar. Trouxe-lhe uma miúda franzina com evidentes traços orientais, mas com os olhos muito mais claros. A cor era de uma avelã bonita, esverdeada no fim. Um rosto peculiar. E sincero.

O ar perdido da miúda condizia com o de Gabriel. Dois perdidos na mesma vida. Abraçou-a e sussurrou-lhe palavras doces para que sentisse que a queria. Era o que gostava que fizessem com ele.

– Eu já vivi num barco, não tenho medo de água.

Gabriel sorriu.

Pegou-lhe na mão.

– Vamos.

É estranho como pode caber tanta calma no meio do caos.

Percebeu que a coragem tinha de ser uma coisa explícita. Mas sentia-se rude demais para a tarefa que o destino lhe havia confiado. Essa era a verdade.

– Achas que o mar vai engolir-nos?

– Não. Vai tudo correr bem.

– Queres que te mostre como se escreve Paz em chinês?

– Claro. Quando chegarmos a casa.

Enfiou a pequena maleta da miúda dentro da mochila que colocou às costas. Sentou-a num banco improvisado que montou em cima do guiador e lá foi devagar.

– Não tens carro?

– Não. Sou ecologista e tenho pouco dinheiro.

– Vou ser ecologista contigo.

– Que remédio tens…

Maria da Paz encostou-se ao peito de Gabriel e fechou os olhos.

Esta vida nova deslizava pelas ruas de uma cidade que nunca vira.

Tinha perdido tanto.

Afinal, porque têm as mães de morrer?

 

Texto: Mónia Camacho
Foto: Mónia Camacho

“Despojos de um Inverno” – Conto Minimalista #1

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O primeiro texto da Editora Minimalista é da escritora Cristina Vicente. Com ela, uma estação do ano e o melhor do que a natureza nos dá.

Primeiro foi perceber onde estava. Noite intranquila e de pesadelos. Em repetição. Corpo inebriado nesse acordar de adrenalina; sem proferir palavras ou restolhar qualquer som, esgueirou-se, saindo mais cedo. O silêncio e um resto de noite ainda espalhado no céu eram seus cúmplices. O dourado labrador, dando pela presença conhecida, nem se mexeu. Já era hábito. Não estranhava, nem sequer quando saltava o muro, estando o portão apenas encostado. Rangia e isso alertaria a fuga. Pelo caminho foi largando folhas, que ia arrancando uma a uma de si, folhas brancas, algumas com uma só palavra, várias ilegíveis, outras tantas doridas, amarrotadas. Os bolsos fundos abarrotados foram ficando lentamente vazios, onde unicamente as mãos passaram a ter lugar. Caminhava de cabeça baixa. O vento passava-lhe adiante, brincalhão e levantava uma fina poeira; se antes era razão para correr atrás dele, há muito deixara de importar-se com as constantes reviengas, até com aquelas provenientes dos mais diversos imprevistos. A estrada de terra perdia-se na curva e as pegadas no pó seguiram para lá dela, apagando-se o olhar de quem, na silhueta esbatida, esperasse ver algum rasgo de esperança.

Andara todo o dia em percursos diversos, revezando-se entre florestas e campos abertos. Cansara-se. E nada encontrou. Nem vontade, diversão ou inspiração. Reinava o vazio. Repentinamente, escurecera. A margem do seu mundo de água estava colmatada com destroços, revelando que a intempérie fora devastadora. Ultrapassou-os. Do outro lado, em língua de areia de formação recente, um enorme ramo arqueado, preso, abandonara-se à sorte; a sua turbulenta viagem terminara. Certamente que terá como destino transformar-se em lenha incandescente e depois cinzas, no recém-chegado e já duro Inverno. O céu carregado não permitia enganos, a chuva aproximava-se, sentia-lhe o cheiro e percepcionava a sua vibração no ar, contudo, a luz incandescente do ocaso envolvia o ramo e de repente a sua beleza foi encontrada, sendo o seu destino alterado.

Arrancou-o do areal e passando-o na água, removeu, como lhe foi possível, a areia e fiapos agarrados. Com alguma dificuldade e protegendo-lhe os ramos menores, conseguiu arrastá-lo pelo caminho de regresso. Parava de onde a onde e as folhas brancas, espalhadas, retornavam ao lugar que tiveram naquela manhã: os bolsos, que voltaram a ficar repletos.

Abriu o irritante e rangente portão, fazendo passar o ramo, sem partir qualquer galho. Pela primeira vez naquele dia sorriu: o seu poema estava salvo. O ramo, momentaneamente pousado no alpendre, admirou-se: onde estaria?

De volta com uma escova de cerdas macias, sacudiu e delicadamente foi limpando todo e qualquer resíduo do ramo, até ficar como queria. Tinha a seu lado um cesto cheio de pequeninas e coloridas molas de madeira. Aos poucos as folhas escritas foram saindo dos bolsos e enchendo os pequenos galhos; mesmo as folhas brancas deixaram de sê-lo. As palavras acorriam em catadupa e rapidamente um poema ficou visualmente escrito: o que antes fora despojo e despejo de tempestade, transformara-se em algo diferente e belo, no recanto de um alpendre que deixou de estar vazio.

 

Texto: Cristina Vicente
Foto: Cristina Vicente

Minimalista junta-se à TIL para contar contos e promover a leitura

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A Minimalista vai entreter e fazer pensar os seus leitores através da TIL. Contos de 15 em 15 dias , diversificados por todos os escritores desta editora de Leiria. Aqui fica a apresentação deste projeto:

A simplicidade é uma coroa de flores e pés descalços. 
 
Esta é uma terra emprestada, pela TIL à Minimalista, para plantar histórias de quinze em quinze dias.
 
O leitor deve ver onde põe os pés.
 
A Minimalista é uma editora que nasceu da necessidade de publicar com amor.
De tratar os autores, os livros e os leitores com carinho.
 
Respeitar a criatividade, a linguagem e, por que não, a história que se conta.
Tudo num espírito de leveza e com uma imagem própria.
 
O que não quer dizer que algumas flores não sejam complexas e não tenham cheiros fortes.
 
Temos uma certa vocação de parteiros: fazemos nascer. 
 
Flores, livros, histórias.
 
Deste nosso Éden nasceram já: “Aviões de Papel” de Paulo Kellerman, “Florbela” de Sandrine Cordeiro, “Água com Açúcar” de Ana Miguel Socorro e uma “Antologia Minimalista” onde podereis conhecer o estilo de cada um dos jardineiros.
 
Ou então, deixem-se ficar a ver o que nasce por aqui.
 
Sejam bem vindos!