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Paz é o nome do segundo conto, da autoria de Mónia Camacho. Porque descobrir a paz em tempos de incerteza será sempre um alívio
Gabriel remexeu os bolsos e as mãos trouxeram à superfície destroços de vida. Segurou a moeda de dois euros, tudo o que lhe restava naquela manhã de Inverno, e pediu uma sopa de feijão que comeu à janela para vigiar a bicicleta.
O calor começou a propagar-se a zonas do corpo longínquas, pontas de si que já pouco conhecia. Um momento de conforto. Não sabia quando ia haver mais.
Manteve na boca o sabor caseiro imitado, colher a colher, e deixou-se ficar a gastar mais um bocado de tempo.
A cidade continuava o caos.
As estruturas não funcionavam. Os tumultos eram constantes.
O nível do mar continuava a subir todos os dias.
Agora, a normalidade era andar de galochas com água pelas canelas.
Lisboa era a nova Veneza… E Veneza tentava uma estratégia louca para se elevar. Outras cidades europeias desapareciam também nas águas.
O monumento dos Descobrimentos e a Torre de Belém, ícones do turismo da cidade, rodeados de Tejo como ilhas. O rio chegava ao Centro Cultural de Belém e a linha do comboio estava interrompida. Toda a baixa meio submersa.
A natureza empurrava o homem e fazia saber que não estava para brincadeiras.
Levou a bicicleta à mão pelo passeio vendo o rasto de água lamacenta que deixava para trás. Já na estrada pedalou com vigor, um esforço mais para esquecer do que para se transportar depressa.
O seu propósito de vida estava esbatido. E não era, exactamente, um rapaz de vinte anos. Era alguém de quarenta que já devia ter arranjado tino para governar a existência. O insucesso deve ser isso.
Morava numa zona alta da cidade. Um estúdio com um pequeno terraço aberto ao céu. Refúgio de todas as estranhezas de que o mundo agora era feito. A única coisa que herdara da mãe; era o que lhe tinha valido nestes tempos de escassez. E com aulas de yoga ia dando.
Subiu as escadas com a bicicleta às costas. Quando chegou tinha um envelope colado na porta pela porteira. Pegou-lhe com as mãos suadas; abriu-o e ficou um momento a olhar para a imagem.
Precisava de ar.
Elsa morrera!
A mulher que o acaso lhe entregara um dia.
A parte oriental da sua vida. A melhor! Aquela que deixara rasto.
Há anos que Gabriel estava sozinho no mundo. Não havia pessoas para desiludir, nem expectativas para satisfazer. Também não havia colo, nem amor. As estações passavam por cima das coisas de cada dia. A ir e a vir.
E agora haveria uma pequena macaense que ia chegar no voo da British Airways das vinte e uma horas…
Maria da Paz.
A Elsa tinha uma filha.
Estava tramado! Não sabia fazer isso.
Ainda menos neste mundo maluco. Mas era também por isso que tinha de aceitar.
A sobrevivência torna-se mais violenta quando temos alguém com dez anos para cuidar…
Meteu-se debaixo do chuveiro a apagar alguma ansiedade. Queria ficar ali indefinidamente, mas não tinha dinheiro para isso. Aliás, não tinha dinheiro para nada.
Vestiu-se e preparou-se para sair.
Não queria chegar tarde àquele momento.
O aeroporto estava razoavelmente calmo, já Gabriel estava longe desse luxo.
A hospedeira pediu-lhe identificação e entregou-lhe uma folha para assinar. Trouxe-lhe uma miúda franzina com evidentes traços orientais, mas com os olhos muito mais claros. A cor era de uma avelã bonita, esverdeada no fim. Um rosto peculiar. E sincero.
O ar perdido da miúda condizia com o de Gabriel. Dois perdidos na mesma vida. Abraçou-a e sussurrou-lhe palavras doces para que sentisse que a queria. Era o que gostava que fizessem com ele.
– Eu já vivi num barco, não tenho medo de água.
Gabriel sorriu.
Pegou-lhe na mão.
– Vamos.
É estranho como pode caber tanta calma no meio do caos.
Percebeu que a coragem tinha de ser uma coisa explícita. Mas sentia-se rude demais para a tarefa que o destino lhe havia confiado. Essa era a verdade.
– Achas que o mar vai engolir-nos?
– Não. Vai tudo correr bem.
– Queres que te mostre como se escreve Paz em chinês?
– Claro. Quando chegarmos a casa.
Enfiou a pequena maleta da miúda dentro da mochila que colocou às costas. Sentou-a num banco improvisado que montou em cima do guiador e lá foi devagar.
– Não tens carro?
– Não. Sou ecologista e tenho pouco dinheiro.
– Vou ser ecologista contigo.
– Que remédio tens…
Maria da Paz encostou-se ao peito de Gabriel e fechou os olhos.
Esta vida nova deslizava pelas ruas de uma cidade que nunca vira.
Tinha perdido tanto.
Afinal, porque têm as mães de morrer?
Texto: Mónia Camacho
Foto: Mónia Camacho