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“Inventário” é o quarto conto da Editora Minimalista, da autoria da escritora Lia Wolf.
Trinta e três anos, trezentos e trinta e três dias: três mil, trezentos e trinta e três órgãos sexuais. Não sabia se era a coincidência ou a capicua, mas excitava-a.
Olha para o livro pousado no colo: a sua tese de mestrado.
Passa o dedo, carinhosamente, pelas letras em relevo: fruto de um arroubo de irreverência. A cor e a disposição das letras sugerem o conteúdo. Um pénis destaca-se parecendo insuflar a capa: vermelho-glande, como lhe chamara. A memória provoca-lhe um calor de satisfação. Sabor de missão cumprida.
Sorri, ao lembrar-se como o seu orientador ficou melindrado quando lhe propôs o título “Inventário de Pénis”. Acabou por castrá-lo, resumindo-o a “Inventário”.
A introdução teórica parece-lhe um pouco aborrecida, mas com algumas ideias interessantes. “Prazer do acto da cópula: essa é a verdadeira essência e o núcleo de todas as coisas, a finalidade e a meta de toda a existência”.
Passa algumas páginas à frente e lê um parágrafo à sorte. “O instinto sexual é o núcleo da vontade de viver e, portanto, a concentração de todo querer; eis por que acabei definindo os genitais como o foco da vontade e fulcro de estudo”.
Mais umas páginas, e o tema desenvolve-se. “O orgasmo jorra por entre estertores musculares, olhos revirados, dentes rangentes e balbuciares: que vão desde o sagrado Ó meu Deus!, passando pelo infantil Aí vai leitinho, até ao profano e libertador Ah, caralho!. No momento final todos os homens retornam ao ventre materno, no êxtase de um flutuar, libertador, ancorado pelo cordão umbilical. Pó és e pó serás. Somos apenas animais transitórios, subjugados por hormonas.”
Decididamente, já chega; está sem paciência para mais: é preciso mudar a imagem de fundo dos seus sonhos. Sempre que fecha os olhos, vê-os: de todas as formas e feitios – dos mais pueris aos mais maduros, dos mais raquíticos aos mais atléticos, dos mais encarpados aos mais estagnados.
Pousa-o sobre o banco do passageiro, ao lado, e fita o mar. A espuma branca das ondas, em movimentos regulares, hipnotiza-a e atira-a novamente para dentro de si. Despe os últimos pudores (será que sobraram alguns?) e sente a água a lavar-lhe a alma. Mergulha, e relembra os últimos dias: os últimos trezentos e trinta e três dias.
Dez homens por dia, aproximadamente. Ou deveria dizer, a bem da verdade, dez pénis por dia. Os homens são apenas um mal necessário, uma extensão inevitável do foco da pesquisa principal. Ruído de fundo, branco: densidade espectral plana.
Abana a cabeça, e aperta os olhos com força, tentado sacudir os pensamentos aleatórios e alinhar as ideias: tentando silenciar as vozes que nunca se calam. Apoia-se nos braços, rodeada de água, nua, debruçada para trás, deixando-se envolver: permitindo-se flutuar nas memórias uma última vez.
Suspira, relembrando o conselho do seu orientador de mestrado: “sem prática não há teoria: há que meter as mãos na massa!”. E ela assim fez. Mediu, pesou, estimulou, testou: tudo registado; tudo em prol da ciência.
Recorda cada um deles: com memória fotográfica, olfacto de sabujo, ouvido absoluto -para cada gemido musical-, e paladar de chef.
Todos: únicos e comparáveis.
Catalogados e ordenados.
Com índice remissivo.
Tempo de refracção.
E desvio-padrão.
Texto: Lia Wolf
Foto: Frankie Boy