David Fonseca: “Acho que os Silence 4 foram o último grande fenómeno da música portuguesa”


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Teresa Neto
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    A celebrar 20 anos de carreira e no meio da tour do novo album Radio Gemini, David Fonseca falou com a TIL sobre este último projeto e qual a fórmula para criar.  E ainda revelou uma artista leiriense que aprecia bastante e que lhe vê um imenso futuro.

     

    Começamos pelo novo álbum. São 20 anos de carreira e Radio Gemini tem 20 faixas (21, com a introdução). Há alguma curiosidade à volta deste número?

    Falam sempre muito do número de faixas que o disco tem. A verdade é que o disco tem a mesma duração de um disco normal, cerca de 60 minutos. É feito com uma espécie de playlist radiofónica e a maioria das músicas que lá estão são muito curtas. Funcionam quase como jingles publicitários dentro do programa Radio Gemini. E por isso é que tem tantas faixas, não é por outra razão qualquer.

    David Fonseca em entrevista à TIL

    O facto de o tema do disco se centrar na rádio é alguma paixão escondida?

    Sim, fiz rádio durante muitos anos, aqui em Leiria. Comecei quando tinha 18 anos, a convite de um amigo que naquela altura saiu e acabei por ser eu a entrar para lá. Fiz um programa de rádio durante seis ou sete anos na Rádio Clube de Leiria, já extinta, e só saí de lá por causa dos Silence 4. Fazia o programa aos sábados, entre as 20 e as 22 horas, e era super complicado gerir com o calendário dos concertos. Este álbum acaba por ter a ver com esses tempos da rádio.

     

    Interessante. É giro esse processo nostálgico da rádio neste novo álbum. Se bem que as músicas também têm muitas influências dos locais onde esteve nos últimos tempos…

    Por norma, componho no mesmo sítio. É onde tenho os instrumentos, onde vou colecionando ideias. Mas desta vez não me apeteceu fazer assim e arranjei um sintonizador/gravador que faz um pouco de tudo e comecei a andar com ele de um lado para o outro, de rua em rua. Colocava os headphones e o mundo à minha volta fechava-se e conseguia estar em vários sítios diferentes. Dei por mim e estava a fazer músicas em todos os sítios e mais alguns por onde passava. A minha favorita foi dentro de um avião! Depois, quando voltei ao meu sítio para perceber o que tinha gravado, era curioso ouvir os sons reais que lá estavam porque esses sons vinham exatamente de onde eu tinha estado. Os sons que entraram no disco foram exatamente os sons que foram gravados nos carros, nos hotéis, nos aviões e em tantos sítios diferentes. Até à noite, sob as estrelas… A maioria dos sons mais curtos foram gravados em comboios no Japão, por exemplo. Foi uma mudança radical daquilo a que estava habituado.  Posso mesmo dizer que este é um disco itinerante.

    O músico recebeu-nos no camarim, em pleno Teatro José Lúcio da Silva, em Leiria

    Supondo que já havia a ideia de gravar assim, não houve receio de que o novo processo pudesse não resultar?

    Não, não. Uma das coisas boas da minha profissão é que nunca faço ideia do que vai acontecer. Eu nunca sei. Nunca sei se vou fazer um disco, nunca sei se as coisas vão correr bem. O que eu sei, e aprendi isto através da fotografia,  é que tudo tem de estar ao teu alcance. Uma boa frase para exemplificar este método é do Picasso: “Quando a inspiração te vem é bom que te encontre a trabalhar”. Quem trabalha nestas áreas criativas está num estado de alerta sistemático. Quando uma ideia aparece é bom que a pessoa tenha capacidade de a concretizar, porque senão foge, como outra coisa qualquer. Tento sempre ter uma forma de conseguir agarrar essa ideia. Ainda ontem estava a tratar de umas coisas chatas no computador e, por acaso, tinha o piano ao meu lado. Já estava tão farto de olhar para letras e números no portátil que comecei a testar ao piano. Fechei o piano e ele fez um som muito específico. No meio daquilo achei interessante aquele som. E gravei logo. Em todos os meus discos tenho sempre cerca de três a quatro horas de material. Depois, em estúdio, tento perceber o que me captou atenção naquilo, sejam sons, palavras ou textos. É complexo.

     

    E inesperado. Mas no fim tens sempre material novo…

    Eu espero que nunca me falte material. Nunca me faltou até hoje. E sobra sempre! (risos)

     

    Recorde aqui a crítica do concerto de David Fonseca no Teatro José Lúcio da Silva

     

    Guitarra, baixo, piano, bateria… Há algum instrumento ainda gostaria de aprender a tocar?

    Adorava, mas há uns que nem vou tentar, como o violino ou saxofone. Eu conheço as minhas limitações. Até conseguia, mas ia demorar dez anos a tocá-los como deve ser. Já fico contente se conseguir tocar melhor aqueles que eu já sei tocar. Até porque acho que não sei tocar bem nenhum e ainda não está fora da minha cabeça um dia ter aulas desses instrumentos. Só tive formação musical dos oito aos dez anos e não foi a nenhum dos instrumentos que toco hoje. Por outro lado, esta limitação é o que constrói estas canções porque, como não tenho essas soluções, tenho de inventar para a música acontecer.

    O Salvador Sobral esteve há uns dias em Leiria a atuar e começou o concerto com a Borrow dos Silence 4…

    Não sabia. Tenho de lhe mandar uma mensagem. São coisas do Resende (pianista do Salvador Sobral). Pode ser que alguém tenha gravado…

     

    Leiria ainda vibra muito com o nome Silence 4. Será que o David Fonseca em Leiria ainda está muito rotulado por ser o vocalista daquela banda?

    Não é Leiria. É em todo o lado! Os Silence 4 são uma banda incontornável. Acho que foram o último grande fenómeno da música portuguesa. As pessoas agora têm muitas escolhas, por isso é complexo uma banda chegar a tantas pessoas como esses fenómenos chegavam: o caso dos Silence 4, do Pedro Abrunhosa, dos Delfins, do Rui Veloso… Eram artistas que chegavam a pessoas de todas as idades, de todos estratos sociais e de qualquer região do País. Hoje em dia, isso já não acontece: ou a música é feita para miúdos ou para graúdos. Por exemplo, se o Miguel Araújo e o António Zambujo tivessem o pique em 1998 seriam um fenómeno. Apesar de serem incríveis, e também é incrível o alcance que têm, há muita estratificação e fragmentação da forma como as pessoas ouvem e consomem música, por isso não têm esse alcance absurdo. E, sinceramente, ainda bem! Porque na altura havia uma espécie de demolição total: parecia que todos ouviam a mesma coisa. Hoje em dia as pessoas ouvem vários artistas, há mais poder de escolha, é mais positivo. É incontornável associarem-me aos Silence 4 e isso é perfeitamente normal. Havia crianças que gostavam dos Silence 4. Muitas! Hoje, essas crianças têm  20, 25, 30 anos… e ainda se recordam dos Silence 4. É inacreditável mas é verdade. Não há sítio nenhum para onde eu vá, e muitas vezes antes de dizerem o meu nome, dizem que eu sou “o tipo dos Silence 4″…. Toda a gente que era adolescente em 98, tenho muita pena, mas levou comigo. Aliás, é um bocadinho como vai ser a adolescência desta geração, que ouve muitos artistas como, por exemplo, o Diogo Piçarra. Acho que estes miúdos daqui a 20 anos também se vão lembrar dele.

     

    Continuando o tema Silence 4, há alguma hipótese da banda voltar a fazer um concerto?

    Não, já não. Depois dos cinco concertos que fizemos em 2014, um até no Estádio Dr. Magalhães Pessoa, em Leiria,  dificilmente vamos fazer isso novamente. Já foi (risos).

     

    E sobre Leiria. Há já alguns anos a viver em Lisboa, do que se sente mais falta em Leiria, que não existe na capital, e vice-versa?

    O que sinto falta? Isso é fácil. Em Lisboa sinto falta do campo, em geral. Mas quando estou no campo, também sinto falta da cidade. Acho que estas duas situações se complementam. Lá sinto falta de um certo silêncio, porque Lisboa é uma cidade muito mais intensa. Aquilo que não há em Leiria é essa vivacidade de acontecer coisas a toda a hora, a todo o momento.
    Em Leiria sinto falta do rebuliço. Em Lisboa, do silêncio do campo.

    E bandas de Leiria? Há, agora, uma nova vaga de artistas… Algum destaque?

    Olha, no outro dia encontrei a Surma no cinema, em Lisboa. Espero que ela ainda tenha um percurso longo porque ainda é muito jovem. Acho que tem uma energia muito fora do comum. Não parece assim de nenhum sítio específico: nem de Leiria, nem de Lisboa, nem de lado nenhum. Parece um pouco de todo o lado! E essa energia é essencial num artista. A primeira vez que a conheci, e já foi há uns anos, quando comecei a falar com ela percebi logo que havia ali qualquer coisa inquietante. Uma inquietude que eu gosto. Acho que o percurso dela vai ser longo, ela gosta realmente de fazer isto e dá muito dela à música. Espero que Leiria seja só uma nota de rodapé na carreira da Surma, do percurso muito longo que ela ainda vai fazer!

     

    Há algo a dizer sobre o facto de Felipe La Feria ter mencionado, num programa de TV em primetime, que em Leiria não há cultura?

    Não, não tenho. Eu acho que as pessoas afetam-se muito por opiniões negativas. Sempre que há alguém com uma opinião contraditória, aparecem todos a dizer que “isso não é assim” e sentem-se injustiçados. E este problema não é só de Leiria, acontece em todo o lado. É muito mais frequente as pessoas irritarem-se com coisas sobre nós do que enaltecerem as coisas boas que se podem fazer. Porque as mesmas pessoas que ficam indignadas não são aquelas que depois tentam fazer algo para fazer as coisas acontecerem na cidade. Disse, há uns tempos para o Jornal de Leiria, que não via Leiria com possibilidade de concorrer como Capital Europeia da Cultura, que era difícil de acontecer por várias razões. Mas existiram várias vozes que se ergueram, contra mim e as minhas declarações. Mais do que aquelas que fazem por erguer a cidade de Leiria para haver uma hipótese remota de sermos Capital Europeia da Cultura. Os espaços institucionais deviam ser mais proativos em querer fazer de Leiria uma cidade cultural efetivamente fora do comum e não dependerem apenas das associações que muito fazem por amor à camisola. O apoio institucional tem de existir verdadeiramente e essa é a minha posição.